Veremos o seguinte, temos a lei 9514/97 que criou a alienação fiduciária de imóveis, criou o sistema de financiamento imobiliário que hoje está em vigor no país. Quando a ditadura tomou o poder uma das coisas que pretenderam, um dos planos dos militares, era resolver também o problema da habitação popular (é um problema que existe mundialmente).
Assim, tivemos vários sistemas, tivemos o BNH – Banco Nacional da Habitação, apesar do nome não era um banco, era uma autarquia mas não deu certo. Foi substituído pelo FSH, que também não deu certo, posteriormente o FSI que também não deu certo, enfim, uma serie de sistema de financiamento que o governo pretendia fazer para resolver o problema da habitação e não resolveu.
Essa crise desses sistemas foi extremamente curiosa, o financiamento naquele sistema à primeira vista era muito bom, você contava com um financiamento a perder de vista (10, 15, 20 anos) e você pagava parcelas baixas.
Ex. Pagava R$200,00 por mês de financiamento, por um imóvel cujo aluguel valia R$ 400,00, então você comprava o imóvel porque ele rende o valor do financiamento e sobrava um pouco, era interessante até como especulação.
Mas esses financiamento a longo prazo não contaram com uma serie de problemas (inflação, juros, etc.), de tal forma que o financiamento era de 12, 13, 15 anos, depois de 3 ou 4 anos o sistema de aumento da prestação levava aquela prestação a um valor que a pessoa não aguentava mais pagar.
Ex. Depois de 3 ou 4 anos a prestação aumentava para R$ 1.000 por mês, e se você optasse por alugar um imóvel sairia pelo preço de R$ 600,00 ao mês.
É curioso que quando começa uma crise, se você não tem uma solução, cada vez mais se torna uma crise e cada vez fica mais grave. O sujeito chegava em um ponto que não conseguia mais suportar a dívida e simplesmente aceitava que iria perder o imóvel e deixava de pagar, o banco, por sua vez, entrava com uma execução hipotecária (a garantia era hipoteca), mas o processo de execução hipotecária é um processo demorado e o Judiciário é demorado, e ainda, há a sensibilidade do juiz que via que se o processo andasse muito depressa ele colocaria uma família na rua, o processo caminhava lentamente.
O sujeito que estava habitando sabia que perderia o apartamento eventualmente, então ele parava de pagar o IPTU e o condomínio, então quando o banco adjudicava o imóvel (levado à praça ninguém se interessava) eles verificaram que o condomínio e o imposto acumulado era superior ao valor do imóvel, então não havia motivo para pegar um bem que ele sabia que apenas geraria custo, assim o banco adjudicava judicialmente o imóvel mas não registrava, pois se ele registrasse o condomínio e a prefeitura iriam cobrar dele.
Entretanto, os condomínios percebendo isso pegavam a certidão de adjudicação e ajuizavam ação de cobrança contra o banco, o resultado é que o banco não podia mais adjudicar o imóvel para não ter que pagar toda aquela despesa, por outro lado ele também não poderia parar de executar o devedor. Realmente a crise chegou a uma situação em que nada mais dava certo, e assim os sistemas (BNH, FSH, FSI, etc.) não deram certo, e como sempre tentaram algumas soluções.
Perceberam que o sistema não dava certo porque a garantia hipotecaria se mostrou uma garantia que não era das melhores, pelo seguinte:
Ex. A deve para B e da um imóvel de sua propriedade em garantia hipotecária, quando vence a dívida B pode executar, o imóvel é de A mas existe hipoteca, A pode vender o bem mas o comprador sabe que existe hipoteca e B tem o direito de sequela, ele pode ir buscar o imóvel com quem estiver, levar o imóvel à praça para que se pague. Então teoricamente a hipotecário era uma ótima garantia, talvez a melhor que se conhecia no direito brasileiro.
Porém, aos poucos, uma série de outros créditos foram se tornando preferenciais à hipoteca, por ex. O condomínio, o fiscal, alimentos, etc., ou seja, foi se criando uma serie de crédito preferenciais, de forma que o credor hipotecário leva o imóvel à praça, transforma o imóvel em dinheiro, mas antes de receber seu crédito é necessário pagar uma serie de outros créditos. Assim, a garantia hipotecária que era preciosa, que era uma boa garantia, acabou ficando desacreditada.
Chegaram, corretamente, à conclusão que não adiantava fazer o financiamento imobiliário com garantia hipotecária, pois nenhum banco mais emprestava.
Nos EUA verificaram que havia um sistema muito bom e aqui poderia ser transplantado o sistema que estava dando certo nos EUA, mas lá a garantia era hipotecária, a qual no sistema do Common Law funciona pois em 2 meses o credor consegue restituir o imóvel, ao passo que aqui no Brasil já vimos que ela não funcionava. Então para que adotássemos um sistema copiado dos EUA seria necessário uma hipoteca com a mesma natureza da hipoteca de lá (o que era impossível pois a hipoteca aqui já estava dentro de um sistema desacreditado), então foi feito o seguinte, a alienação fiduciária em móveis criada em 1969 deu certo.
A alienação fiduciária de móveis é um contrato de compra e venda com uma relação fiduciária de veículos, desde 1969 até aqui a alienação fiduciária de móveis estava funcionando, o banco financiava a compra do veículo, e se o sujeito não pagasse em 2 ou 3 meses o banco obtinha o veículo de volta, é um sistema extremamente rápido de execução (busca e apreensão), isso até hoje funciona pois a garantia é boa, o banco sabe que se o devedor não adimplir rapidamente é possível obter o bem.
O raciocínio se fechou, se eu tenho um sistema nos EUA que funciona porque a hipoteca é bem aceita basta que eu passe a alienação fiduciária de móveis para imóveis, e criar um sistema de alienação fiduciária de imóveis que permita ao banco, ao financiador, que pegue o imóvel de forma extremamente rápida e assim estimular o banco a efetuar o financiamento imobiliário. Se você estimula o banco a abrir linhas de crédito para financiamento imobiliário todo mundo vai comprar imóvel (terão dinheiro para isso), e desta forma também resolve a situação da habitação popular.
A partir disso criou-se a alienação fiduciária de imóveis através dessa lei de 97, lembrando que em 1997 o sistema americano estava dando certo, portanto, copiaram o sistema americano e colocaram a alienação fiduciária de imóveis com um sistema de cobrança que permitiria a retomada bem rápida por parte do financiador caso não houvesse pagamento.
Esta lei criou a alienação fiduciária de imóveis, criou a securitização e criou a execução extrajudicial. A lei ainda corrigiu algumas falhas, e a lei 10.931/2004 criou o patrimônio de afetação que facilitou isso tudo e trouxe algumas novidades. Mas vamos dar mais atenção à de 1997 que criou a securitização e a execução extrajudicial.
Securitização é um falso cognato, não tem relação com seguro. O nome apareceu nos EUA mas meio por engano. Temos securitização de tudo, mas o que nos interessa é a securitização imobiliária, criada pela lei de 1997.
A lei tinha boas intenções mas tem alguns defeitos muito grandes. Ao mesmo tempo em que criou a alienação fiduciária de imóveis ela trouxe a securitização, que é uma forma de desintermediação bancária.
O curioso da securitização é a tentativa de criação de um império econômico a partir do nada. Veja, o banco cobra juros muito caros, então criou-se um sistema que não precisa do banco, ela funciona da seguinte forma:
Ex. Há uma empresa chamada Cyrella Construtora Ltda, e há uma outra empresa chamada Cyrella Securitizadora, elas são totalmente independentes. A Cyrella Construtora é do João e do Benedito, e a securitizadora é do Francisco e do José, são duas empresas absolutamente independentes, mas a construtora faz construção, venda e incorporação de imóveis, e a securitizadora faz securitização, mas ela não é banco, não pode ser considerada instituição financeira, mas é quase, é muito fiscalizada pela CVM e pelo banco central.
Essa situação ocorreu muito em Campo Belo. A Cyrella construtora tem um nome, uma credibilidade, uma tradição e respeitabilidade, então ela chega em determinado quarteirão para o dono de uma casa que vale R$ 1 milhão, e diz que quer construir edifícios, com apartamentos que valerão em média R$ 3 milhões de reais, com obras de duração de 3 anos. Então o dono da casa passa a titularidade para a Cyrella que vai realizar a construção e o dono do terreno ficará com uma das unidades, e a construtora fornece uma determinada quantia a título de adiantamento.
A Cyrella compra todos os imóveis do quarteirão dessa jeito, praticamente sem dinheiro nenhum, o empreendimento resultará em R$ 180 milhões e vende os apartamentos na planta. Se vender todos os apartamentos na planta a Cyrella tem R$ 180 milhões de recebíveis, então ela pede que a securitizadora faça a securituzação disso, e para isso é necessário uma garantia, e assim a construtora fornece esses 60 apartamentos, que não estão construídos ainda, mas que existirão em média de 2 ou 3 anos. Os 60 apartamentos são concedidos à securitizadora como patrimônio de afetação, os imóveis ficam para a securitizadora como garantira, e esta transforma os R$ 180 milhões de recebíveis em títulos mobiliários, ela divide toda essa quantia em títulos mobiliários de r$ 10 mil reais e oferece isso no mercado.
A securitizadora vende o título por R$ 9 mil e a combina que após 1 ou 2 anos pagará a pessoa pelo valor correto do título, ou seja, é um especulação imobiliária. É uma forma de pegar dinheiro da poupança pública, é um bom negócio. Se tudo der certo, a securitizadora pega R$ 180 milhões dos investidores, passa parte desse valor para a construtora, que usará o dinheiro para construir.
A partir do momento que houve a securitização os valores são devidos para a securitizadora, e não mais para a construtora. Se tudo der certo todos estarão satisfeitos e percebam que foram criados 60 apartamentos a partir da poupança popular. Esse sistema acabou gerando a crise do subprime. Na situação hipotética que vimos houve securitização e houve patrimônio e afetação.
O patrimônio de afetação (que no nosso exemplo são os 60 apartamentos construídos) está afetado ao negócio da securitizadora, ou seja, enquanto este negócio não se resolver bem os imóveis estão afetados ao negócio.
Ex. A lei 8009 institui o bem de família, ninguém pode penhorar o imóvel porque ele está afetado à uma finalidade, que é satisfazer o direito de moradia daquele sujeito. Assim, o bem de família é um bem afetado ao interesse do Estado, que é satisfazer o direito de moradia do sujeito, portanto, o bem está blindado pois tem que satisfazer àquela finalidade.
O patrimônio de afetação que vimos é mais ou menos a mesma coisa, ele está afetado ao interesse dos compradores, que é ter a casa construída e poder morar nela, tanto que se houver falência da construtora e houver liquidação extrajudicial da securitizadora ainda assim os imóveis não sofrerão nenhum problema, eles sempre estarão afetados ao interesse daquele que o comprou.
Mas temos ainda um aspecto extremamente curioso, e que foi também o que acabou por desencadear a crise do subprime. Para que houvesse garantia de que os compradores iriam pagar o imóvel, a alienação fiduciária de imóveis previu um tipo de execução, que na alienação fiduciária de móveis deu certo (em 2 meses o banco pega o veículo de volta), mas aqui é a securitizadora que tem que receber.
Se não pagar a securitizadora aplica-se o artigo 26 e 27 da lei, com a seguinte previsão:
Ex. A comprou um imóvel que vale R$ 1 milhão, e já pagou R$ 850 mil, ficou desempregado, entrou em crise e não consegue mais pagar. Então, chega um momento em não tem mais como pagar, e, portanto, deixa de pagar. A securitizadora vai ao registro de imóveis e de inicio à execução extrajudicial, o sujeito será intimado para pagar o valor atrasado em 30 dias sob as penas da lei. Se ele não pagar o próprio oficial do registro de imóveis passa a propriedade, que é resolúvel, direto para a securitizadora, e assim, em 30 dias perdeu o imóvel que volta para a securitizadora.
Após a securitizadora tem um prazo para vender extrajudicialmente pelo valor da avaliação do imóvel. Ele foi avaliado em R$ 1 milhão de reais, e se ela vender por esse preço está tudo certo, porque ela pega o valor que faltava (R$ 150 mil) e devolve para o antigo comprador o que sobrar (R$ 850 mil).
O problema é o seguinte, nunca se vende na primeira praça. E a lei prevê que se a venda não for realizada na primeira praça é permitida a venda na segunda praça pelo valor do débito, o que normalmente também não ocorre e a securitizadora acaba adjudicando. Supondo que tenha ocorrido a venda na 2ª praça, o devedor recebe uma notificação que deve deixar o imóvel pois este foi alienado para o Fulano. Os valores pagos pelo devedor só seriam por este recebido se a securitizadora tivesse vendido o bem na primeira praça pelo valor de avaliação, como ela vendeu na segunda não sobra nada para restituir. O sistema da lei é draconiano, você perde o imóvel e não recebe nada, isso é tão absurdo nesse ponto que muitos negam as disposições à primeira vista.
A lei trouxe esse sistema para desjudicializar e resolver tudo rapidamente fora do Judiciário, mas o sujeito, sem saída, para não sair do imóvel sem nenhum tostão decide discutir judicialmente, não existe o desapossamento extrajudicial, ou seja, o oficial intima o sujeito para desocupar e se ele se negar quem arrematou o imóvel deverá ajuizar ação de reintegração de posse, a qual a lei prevê a possibilidade de liminar.
Vamos fazer algumas ponderações, a alienação de bens móveis deu certo porque é fácil o juiz determinar a entrega imediata do veículo, os juízes faziam isso tranquilamente, mas quando você vai tirar de alguém não um móvel, mas sim um imóvel, você pensa 2 vezes, pois quando o juiz determina a desocupação ele está colocando toda a família para fora, assim é mais fácil para o Judiciário mandar reintegrar imediatamente o móvel, do que um imóvel, ainda mais quando o sujeito não vai receber nada.
Entendendo haver uma injustiça na lei o juiz acaba achando um jeito de não aplicar, e começou a complicar todo o sistema. O STJ já anulou 2 ou 3 dessas execuções extrajudiciais alegando alguns defeitos, e não devolveu o imóvel. Temos, portanto, uma lei muito boa, mas ela precisa ser consertada para resolver esse tipo de problema, pois pode gerar uma nova crise sem solução do problema.
A lei começou em 1997 (em 2004 houveram algumas alterações), até a lei “pegar jeito”, quando parecia que tudo ia bem em 2008 houve a crise nos EUA, e essa crise ocorreu, entre outros fatores, também porque a lei de lá tinha esses mesmos defeitos que temos aqui.
Bibliografia.
Decreto lei 911/69 – Alienação fiduciária móveis
Lei 9514/97 – Alienação fiduciária imóveis
Securitização
Art. 26/27 – execução extrajudicial
Lei 10.931/2004 – Patrimônio de afetação
Publicado por Ágata Souza Leite
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