No meio jurídico, é de conhecimento geral que a manifestação de vontade dos contratantes, ainda que feita no bojo de instrumento público, não opera, de per si, a transferência do direito real de propriedade (ou de qualquer outro direito real), posto que a eficácia dos contratos fica reservada às partes.
No caso dos bens móveis, a aquisição da propriedade, na forma derivada, exige a tradição (art. 1.267, CC), isto é, a entrega da coisa ao adquirente, que pode ocorrer de modo real, simbólico ou ficto.
Diversamente, quando o bem em questão é um imóvel, a aquisição derivada da propriedade se faz através da transcrição do título aquisitivo no Registro Imobiliário competente, consoante o artigo 1.227 do Código Civil pátrio:
Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código.
Nesse contexto, é interessante notar que o direito brasileiro, grosso modo, filia-se ao modelo romano de aquisição da propriedade imobiliária[1], modelo esse que, a despeito de não permitir a transmissão do domínio por simples convenção (solo consensu), como ocorre no sistema francês, também não empresta ao registro público um caráter absoluto, existente no sistema alemão.
No brasil, à moda romana, a celebração do negócio jurídico deve ser seguida pelo ato registral, que o complementa (mas não substitui, como no caso alemão), emprestando-o eficácia translativa de direito real, de modo que, se houver um vício no contrato, também o registro restará maculado, posto que esse último tem natureza causal. Bem por isso, diferentemente do que sucede na Alemanha, aqui, as informações constantes do Registro de Imóveis geram apenas presunção relativa de veracidade (art. 1.245, §§ 1º e 2º, CC), podendo ser impugnado não só o ato registral em si, mas também o título aquisitivo no qual ele se baseou (art. 1.247,CC).
Quanto ao mais, se o imóvel objeto do contrato translativo de direito real possuir valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País, o instrumento contratual a ser registrado deve, ele próprio, ter caráter público, sob pena de invalidade do negócio (art. 108, CC).
Com efeito, esse processo de transmissão de direitos reais, que em tese já parece estafante, na prática pode se tornar ainda mais penoso, dado aos altos emolumentos cartorários cobrados, à necessidade de recolhimento de ITBI, às exigências de apresentação de certidões negativas de débitos tributários, e de averbação de obras existentes no imóvel, mediante comprovação de recolhimento de encargos previdenciários. Somado a isso, podem haver vícios formais na cadeia dominial dos imóveis, geralmente causados pela imperícia dos registradores, vícios esses que, devido ao princípio da continuidade registral, obstaculizam novas transmissões.
Diante das complicações burocráticas elencadas, incompatíveis com a celeridade demandada pelo tráfico jurídico, grande número de brasileiros opta por celebrar apenas pré-contratos particulares de compre e venda, nos moldes do artigo 462 e seguintes do Código Civil, sendo poucos os que se preocupam em, ao menos, dar eficácia real aos seus direitos creditícios de aquisição do bem, através do registro do contrato preliminar no fólio do Registro de Imóveis competente.
Ademais, também é muito comum que os promitentes compradores, conquanto ainda não tenham direitos reais sobre os imóveis, celebrem novos contratos preliminares de compra e venda com terceiros, criando, por vezes, uma cadeia de promitentes compradores e promitentes vendedores.
Em geral, isso se deve ao fato de os promitentes compradores se julgarem donos do imóvel, já que quitaram o preço acordado com promitente vendedor (que, às vezes, nem é o proprietário do bem). Noutros casos, mesmo compreendendo que não são proprietários, o fazem por pura ignorância quanto às repercussões jurídicas desse ato, ou por desconhecerem uma forma mais prática e segura para disporem dos seus direitos.
Com efeito, embora seja em tese lícita – desde que feita de boa-fé, com observância do dever de informação - a venda a non domino (venda por quem não é proprietário) funciona como um ajuste condicional, submetido a condição suspensiva consistente na posterior aquisição, pelo alienante, do domínio sobre o imóvel. Nesse sentido, lecionam Farias e Rosenvald[2]:
Apesar de causar alguma estranheza, o sistema jurídico autoriza, ainda, a venda de coisa futura ou a venda de algo que ainda não pertence ao alienante. É possível entender como coisa futura aquela que ainda não pertence ao alienante ao tempo da conclusão do negócio jurídico, mas que, posteriormente adquirida pelo alienante, empresta eficácia superveniente ao negócio, como se o adquirente de boa-fé se convertesse em proprietário desde a data da tradição (CC, art. 1.268, § 1º). [...] É a chamada venda anon domino. Não é difícil sentir que a não aquisição da coisa pelo vendedor, para honrar o negócio, gera a sua ineficácia. Trata-se, pois, de um negócio com eficácia condicionada à aquisição superveniente, como indica a leitura do art. 483 do Código Substantivo. Avalizando o entendimento, Carlos Roberto Gonçalves expõe que “a eficácia da venda de coisa alheia depende de sua posterior revalidação pela superveniência do domínio”.
Na mesma senda, caminha a cátedra de Caio Mário da Silva Pereira[3]: “se o alienante estiver de boa-fé, e ulteriormente vier a adquirir a propriedade da coisa que vendeu, revalida-se a transferência, e retroage o efeito da tradição ao momento em que se efetuou (Código Civil, art. 1.268, § 1º);[...]”.
De fato, esse é o raciocínio correto a se extrair dos artigos 483e 1.268, § 1º, do Código Civil, cuja transcrição ora se impõe:
Art. 483. A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório.
Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono.
§ 1o Se o adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, considera-se realizada a transferência desde o momento em que ocorreu a tradição. [...]
Note-se, a este ponto, que o promitente vendedor não-proprietário realiza autêntica promessa de fato de terceiro, qual seja, a manifestação de vontade do proprietário voltada a transferir-lhe o domínio do bem, para que possa honrar com a venda condicional que realizou, sob pena de responder ao promitente comprador, na forma do artigo 439 do Código Civil:
Art. 439. Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este o não executar.
Além dessa, outras repercussões perigosas há que, de ordinário, não são consideradas pelos contratantes, a saber: 1) o último promitente comprador da cadeia não tem, a princípio, relação jurídica com o proprietário, sendo-lhe inviável pleitear, em face desse, a adjudicação compulsória do imóvel; 2) serão necessárias não uma, mais sucessivas transmissões do imóvel, até se chegar ao último promitente comprador do imóvel, o que maximizará a demora, os custos, e os riscos da operação; 3) é inviável esses promitentes compradores o registro de seus contratos à margem da matrícula do bem, obtendo direito real de aquisição (artigos1.417 e 1.418, CC), justamente porque eles não possuem relação jurídica com o proprietário.
De tal arte, em tais casos, afigura-se bem mais conveniente a todos os envolvidos a utilização de uma figura negocial diversa, que enseje semelhante resultado prático, mas com repercussões jurídicas satisfatórias.
Uma dessas figuras é a cessão onerosa de posição contratual, bem trabalhada na obra de Sílvio de Salvo Venosa, que aduz:
É indiscutível que a cessão de posição contratual é negocio jurídico e tem também características de contrato. Nesse negócio, vamos encontrar que uma das partes (cedente),com o consentimento do outro contratante (cedido),transfere sua posição no contrato a um terceiro(cessionário). Para que não ocorra dubiedade de terminologia, devemos denominar o contrato cuja posição e cedida de contrato-base. Por conseguinte, por intermédio desse negócio jurídico, há o ingresso de um terceiro no contrato-base, em toda titularidade do complexo de relações que envolvia a posição do cedente no citado contrato. É imprescindível para a atuação desse negócio o consentimento do outro contratante, ou seja, do cedido. Isso porque quem contrata tem em mira não apenas a pessoa do contrato, mas também outros fatores, sendo o principal deles a situação patrimonial da parte[4]
Observe-se que esse tipo de negócio implica a transmissão de todo o complexo de relações contratuais, com suas situações passivas e ativas, exigindo-se, por isso, o consentimento expresso do contratante cedido, o que nem sempre é factível.
Assim, havendo recusa do promitente vendedor/proprietário, acredito que a melhor alternativa, em se tratando de promessa de compra e venda na qual o valor do imóvel se encontre quitado, seja a cessão onerosa de crédito (art. 286 e seguintes do CC), por independer do consentimento do proprietário/cedido, bastando a notificação do mesmo (art.290, CC). De fato, aquele que tem direito de aquisição sobre determinado imóvel pode cedê-lo a terceiro, mediante pagamento, sendo substituído no polo ativo da relação jurídica pelo cessionário, evitando assim a necessidade de sucessivas transferências do bem.
Ademais, o cedente pode se desligar completamente da relação jurídica, não respondendo pela solvência do devedor (art. 296, CC). À sua vez, o cessionário tem legitimidade ativa para requerer a adjudicação do imóvel para si, junto ao proprietário, podendo ainda exercer atos conservativos do direito cedido (art. 293), sem mencionar que pode conferir eficácia real ao seu direito creditício, mediante registro dos instrumentos contratuais (contrato-base e cessão de crédito) no Registro Imobiliário. Para além disso, as exceções pessoais que o cedido venha a ter contra o cedente, após a notificação da cessão, não serão oponíveis ao cessionário (art. 294).
Contudo, apesar de serem inúmeras as vantagens da cessão de direitos sobre a venda condicional de bens de terceiro, grande parte dos brasileiros, pelos motivos expostos acima, continuam a celebrar promessa de compra e venda sucessivas, prática essa que acaba por inundar o Judiciário com litígios intrincados, muitas vezes extintos sem resolução de mérito, seja pela ilegitimidade passiva do proprietário domínio do bem, seja pela impossibilidade jurídica do pedido adjudicatório em face do promitente vendedor, já que esse não pode transferir direito real que não detém.
De mais a mais, quando se logra superar tais questões preliminares, não raro chega-se à conclusão de que o negócio jurídico em foco não está apto a produzir os efeitos pretendidos, pois quem se comprometeu a vender o bem ao demandante não era proprietário, e nem adquiriu posteriormente o domínio da coisa, de modo que o referido negócio é ineficaz, nos termos do artigo 483 do Código Civil.
É, pois, nesse contexto que avulta a importância da norma contida no artigo 170 do Código Civil pátrio, que consagra oprincípio da convertibilidade dos negócios jurídicos[5]. O artigo citado está assim redigido:
Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.
Embora a norma tenha ingressado na legislação nacional apenas com a edição do Código Civil de 2002, Pontes de Miranda já vaticinava sobre o tema, apoiado no direito comparado, com notável influência do direito alemão, no qual já havia regulamentação expressa do instituto:
Pode dar-se, conforme foi dito, que o mesmo complexo de elementos sirva à composição de dois ou mais suportes fáticos. Então, entre os que estariam deficitários (nulos ou anuláveis seriam os negócios jurídicos) e o que seria assaz para a constituição de ato jurídico válido, há de se preferir a esse. É o princípio da convertibilidade, segundo o qual, na determinação das categorias jurídicas, se atende ao mínimo suficiente e, na interpretação da vontade negocial, se lhe salva o máximo possível. Nesse salvamento, de certo modo se deixa de atender a parte de vontade; pois que, compondo-se o negócio jurídico suficiente, se afasta a vontade manifestada, naquilo em que se quis o negócio jurídico nulo. Não se pode dizer que se abstraia da vontade; abstrai-se de parte dela, exatamente para se lhe reter o máximo possível. Dá-se algo de parecido, em operação, com o que se passa com a não-contagiação, em caso de negócio jurídico parcialmente nulo: procurando-se o mínimo suficiente, para se salvar o máximo possível de vontade, em verdade leva-se em consideração a vontade que teria sido manifestada, se o manifestante, nos negócios jurídicos unilaterais, ou os manifestantes, nos negócios jurídicos plurilaterais, houvessem conhecido a sorte do resto do que queriam[6].
O princípio da convertibilidade (art. 170, CC), portanto, impõe a desconsideração das manifestações volitivas incompatíveis com a ordem jurídica, apenas naquilo que efetivamente conflitarem com o Direito, mantendo ou aproveitando a essência daquelas vontades para subentender vontades outras, que presumidamente teriam as partes, se estivessem conscientes da impossibilidade jurídica do negócio inicialmente pretendido.
É inegável tratar-se de norma extremamente rebuscada, e de dificílima aplicação prática.
Em fato, se a interpretação da vontade manifestada pelas partes já é tarefa das mais tormentosas, o que dizer da interpretação de uma vontade presumida dos contratantes, a qual provavelmente sequer existiu na psique dos mesmos, pois não haviam se apercebido do vício que inquinava o ato praticado.
Apesar dos pesares, penso que o ditame em foco constitua instrumento jurídico de grande importância, não aplicável apenas para o saneamento de negócios inválidos, mas também de recategorização jurídica de negócios fadados à ineficácia, como sucede frequentemente com as promessas de compra e venda sucessivas, a fim de ajustar o tipo contratual à finalidade prática pretendida pelos contratantes, evitando que deslizes técnicos inviabilizem a tutela dos seus legítimos interesses.
Naturalmente, a aplicação desse princípio exige muitas cautelas, sendo indispensável, de início, a perquirição da existência de boa-fé na conduta de pelo menos uma das partes, eis que, v. G., se duas pessoas entabulam negócio com o intuito de usurpar direitos alheios, não há que se cogitar do aproveitamento ou retificação do ato.
Sobremais, para que haja o rearranjo do negócio jurídico, todos os interessados devem estar integrados ao processo, garantindo-lhes amplo contraditório e a observância do dever de consulta prévia às partes (art. 10, NCPC), a fim que de a recategorização do contrato não seja fruto de juízo solipsista do magistrado, à revelia dos partícipes da relação jurídica.
Destarte, segundo a tese ora defendida, o último promitente comprador de uma cadeia de promessas de compra e venda sucessivas não terá de aguardar que todos os seus predecessores adquiram a propriedade do imóvel e o transmitam ao “próximo da fila” para, só então, ver o seu direito creditício sobre o bem se tornar eficaz (art. 483, CC), podendo reclamar o imóvel para si.
Em tal caso, penso que caberia ao último promitente comprador propor ação adjudicatória, em nome próprio, citando todos os envolvidos, e requerendo que o magistrado declarasse, com arrimo no artigo 170 do Código Civil, que os contratos realizados, além de representarem promessas de compra e venda condicionais, constituíram, também, cessões implícitas dos direitos de créditos então titularizados por cada um dos promitentes vendedores, evitando assim as transmissões sucessivas de propriedade, que representam dispendioso e moroso exercício de inutilidade.
Dessa forma, o último promitente comprador converter-se-ia no único titular de direito crédito sobre o bem, tendo apenas ele legitimidade para demandar a adjudicação do imóvel em face do proprietário, sendo o requisito da notificação do cedido suprido pela própria citação judicial.
[1] FARIAS, Criatiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson.Curso de direito civil: direito dos contratos. V.4,2ed. Rev. Ampl. Atual. Salvador: JusPODIVM, 2012. P. 364
[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. V. 4. 18ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
[4] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 13ed. São Paulo: Atlas, 2013. P. 159
[5] MIRANDA, Francisco Pontes de. Tratado de direito privado - parte geral: validade, nulidade e anulabilidade. Tomo IV. 2ed. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 2001. P. 165
Comentários
Postar um comentário